Na área da tecnologia, todo o dia é dia de novidade: novos produtos e
serviços surgem em uma velocidade impressionante e sempre trazem
novidades para os consumidores. Mas a velocidade nem sempre é garantia
de acesso para todos.
De acordo com a Organização Mundial da
Saúde, cerca de 285 milhões de pessoas no planeta possuem hoje algum
tipo de deficiência visual. No Brasil, dados do Conselho Brasileiro de
Oftalmologia apontam que mais de 1,15 milhão possuem atualmente algum
tipo de cegueira. Para essas pessoas, os dispositivos eletrônicos, em
especial os smartphones que usamos no dia-a-dia podem não servem de
muita coisa se não trouxerem opções de acessibilidade.
Os
primeiros celulares acessíveis chegaram ao mercado através da Nokia,
ainda no auge do sistema operacional Symbian da marca. Determinados
modelos da empresa podiam receber o software Talks, produzido por dois
engenheiros alemães e comprado pela americana Nuance Communications,
especializada em tecnologias de conversão de texto para som. O software
adicionava algumas funções de acessibilidade ao celular, como a leitura
do conteúdo da tela, mas acabou defasado com a queda nas vendas da Nokia
e com o fim do Symbian. “Na época, a Nokia era a maior fabricante de
celulares do mundo e tinha aparelhos excelentes, era uma escolha
lógica”, contra Robert Mortimer, coordenador de projetos do Laratec, o
centro de tecnologia assistiva da Associação Brasileira de Assistência
ao Deficiente Visual, Laramara.
Desde 2008, a Laramara
disponibilizou licenças do software Talks no Brasil através de uma
parceria com o Banco Bradesco, mas o custo alto do produto, que saía por
R$ 720, e a virtual “morte” do Symbian no mercado levou a associação a
suspender a venda do Talks no ano passado. Hoje, a recomendação dada
pela Laramara para quem procura um dispositivo é direta: o iPhone.
A
grande mudança para usuários de celular com alguma deficiência visual
veio com o lançamento do iPhone 3GS, da Apple, que trazia o programa de
leitura de tela VoiceOver no dispositivo. O programa, que também está
disponível nos dispositivos com o
Mac OS X,
foi o primeiro a trazer as configurações de acessibilidade de forma
nativa. É possível, por exemplo, deslizar o dedo sobre a tela para
passar por cima de ícones e ouvir as opções do celular. O programa
também substitui o toque simples por um duplo toque, como o duplo clique
do mouse, para abrir apps ou selecionar opções.
Para Beto
Pereira, consultor técnico do Laratec e usuário do iPhone, hoje o
dispositivo é o que oferece a mais completa acessibilidade ao cego. “A
grande vantagem do iPhone é o desenho universal do produto, todos os
dispositivos são iguais. Quando uma pessoa cega pega um iPhone 4, 4S, 5
ou um iPad, ela já sabe como usar”, explica. Há três anos Beto utiliza o
iPhone 3GS, o seu primeiro dispositivo Apple. Antes de adquirir o
iGadget, Beto também era um usuário de um Nokia com o software Talks.
“Claro que houve uma fase de estranhamento, mas isso é normal”, conta.
Para
o consultor, a principal vantagem do smartphone Apple é a quantidade de
aplicativos disponíveis que substituem ferramentas do dia-a-dia, que
antes representavam dificuldades para cegos. “Se eu quisesse um relógio
que me falasse a hora, precisava gastar cerca de R$ 300, ou uma
calculadora falante, de R$ 100 a R$ 300. Agora está tudo no iPhone”,
afirma. A empresa também leva a melhor por ser a primeira a exigir
opções de acessibilidade aos desenvolvedores que quisessem utilizar sua
plataforma. O resultado é que grande parte dos apps disponíveis para o
celular, mesmo aqueles que não são voltados diretamente para deficientes
visuais, são acessíveis. “Eles foram um dos primeiros a perceberem o
nicho de mercado que existia. O cego quer rapidez, agilidade,
desempenho, as mesmas coisas que pessoas sem deficiência”, afirma Beto.
Beto
conta que já praticamente aposentou seu laptop e hoje já realiza quase
todas suas atividades através do smartphone ou do iPad. Ele elogia
também o sintetizador de voz fornecido pela Apple, completamente em
português, mas admite que “sempre tem algo a melhorar”.
A Apple,
entretanto, não consegue agradar a todos os consumidores e nem possui a
única plataforma acessível no mercado. A resposta do Google para o
VoiceOver veio pouco tempo depois, com o lançamento da API TalkBack,
junto com
Android 1.6, em 2009. O
Talkback funciona de forma semelhante ao VoiceOver, lendo o conteúdo da
tela e substituindo o toque simples por um duplo toque.
O usuário Kellerson Viana é uma das pessoas escolheu abandonar seu iPhone 3GS em prol de um
Samsung Galaxy Y B5512, com
Android
2.3, que traz uma junção de tela sensível ao toque com um teclado
QWERTY. O motivo, entretanto, não envolveu diretamente a acessibilidade.
“Eu estava cansado de ter que andar com dois celulares no bolso, e a
Apple nunca ofereceu um celular de dois chips, por isso migrei para
Samsung
e para o Android”, conta. A troca de dois dispositivos – seu outro
também era um Nokia E3 equipado com o Talks – aconteceu em junho do ano
passado, mas o novo sistema já agrada Kellerson.
Motivado pela falta de informações sobre as opções de acessibilidade da plataforma
Android na
internet, Kellerson e dois amigos fundaram o
Blog Talkdroid,
onde postam dicas e tutoriais sobre a acessibilidade no sistema. Em
pouco mais de três meses já foram mais de 90 postagens e um reforço de
Portugal deve chegar à equipe em breve. “Ele vai ajudar com novidades
que aparecerem na Europa, já que o mercado lá é muito mais avançado do
que no Brasil”, conta.
Kellerson critica o iOS em alguns
aspectos, como a impossibilidade de copiar contatos para a agenda, além
de considerar o sistema menos intuitivo do que o
Android.
Outro dos pontos fracos da empresa, segundo ele, é o preço dos
dispositivos. “Eu não queria ficar mais gastando dinheiro para ter um
celular novo”, conta Kellerson.
Ele reconhece que o sintetizador
de voz do TalkBack ainda deixa a desejar, a falta de suporte do
assistente para o português também prejudica e a falta de listas e
documentações em portguês na
internet
para se compreender o sistema é um problema. Além disso, o TalkBack só
vem em versão nativa em produtos com Android 4.0 ou superior. Aparelhos
mais antigos (com Android 3.2 ou menor) podem baixá-lo através do Google
Play, em uma versão sem todas as funções disponíveis. Atualmente
existem outros programas de voz disponíveis na loja de aplicativos do
Google em português brasileiro, como o SVOX Br Luciana Voice, que custa
R$ 6,16 e está disponível para dispositivos com
Android 2.1 ou superior. “Nenhum sistema é 100%”, brinca.
Kellerson
acredita no potencial de desenvolvimento das opções de acessibilidade
no Android conforme o Google feche o sistema e passe a desempenhar maior
controle sobre ele, como exigir opções de acessibilidade de seus
desenvolvedores, como feito pela Apple. Segundo ele, muito dos problemas
encontrados no
Android vêm da fragmentação do OS, mas tendem a diminuir no futuro.
O
Android
deve ganhar mais um reforço em breve através de uma API desenvolvida no
Reino Unido e apresentada em julho do ano passado. Apelidada de
Georgie, em homenagem ao primeiro cão-guia da esposa do desenvolvedor,
Roger Wilson-Hinds, a API transforma completamente a interface do
sistema operacional do Google para uma versão otimizada para a pessoa
com deficiência visual. O Georgie já traz opções como GPS e sistema de
captação de texto através da câmera fotográfica, assim como a leitura de
tela, mas ainda só está disponível em inglês e não tem previsão de
chegada no Brasil. “A gente não sabe se ele vai além [do Android], se é
melhor ou pior, precisamos testá-lo”, diz Robert Mortimer.
Independentemente
das vantagens e desvantagens dos sistemas, Robert vê a competição entre
Apple e Google de forma saudável e acredita que ela pode trazer ainda
mais inovações para a área. “Não é bom que apenas uma empresa seja
detentora da tecnologia. qualquer mudança na política da Apple poderia
deixar as pessoas na mão”, afirma.
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